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o desfecho final

  • relatospoeasia
  • 5 de ago. de 2021
  • 3 min de leitura

Foi pela poça d'água que ele viu o movimento. Ele estava sentado, com os cotovelos nos joelhos, a cabeça abaixada e a mente longe. Um dia ordinário de uma vida medíocre. O sofrimento, a angústia e o pesar eram os sabores que sempre tinha na boca. As vezes conseguia amenizá-los com cachaça barata, ou café forte e ruim. Ele olhou para cima, imaginando que fossem pássaros. Até pareciam numa primeira impressão, mas quando conseguiu ver os detalhes, com os olhos acostumados com a claridade cinza do céu nublado, entendeu que era o fim. Ao redor todos começavam a gritar e correr. Baratas ridículas, pensava ele. Se fosse para morrer, que fosse de uma maneira menos idiota do que se desesperando. Se fosse um dia normal, ele ficaria mais um bom tempo no seu habitual banco, com a cabeça voltada para os pés e lamentando rancores, por quase todo seu tempo de intervalo. Mas aquele dia se tornou especial. Levantou com um ânimo incomum e caminhando, pensou aonde queria ir. Este era um momento único, poderia ir a qualquer lugar que pouco importaria. Resolveu voltar ao trabalho. Não voltou para lá porque gostava do lugar, mas sim porque sabia que mais ninguém estaria lá. Era um ambiente tão desprezível que até ratos evitavam. Passando pelo caos que crescia nas ruas, sua energia ia aumentando. Era como ver um filme, ver um filme drogado não sendo ele. Porque nem quando tinha visto algo sobre efeito de drogas ele tinha sentido aquilo. Era um sonho. Quando chegou ao prédio do trabalho, como imaginara, só restavam vestígios de uma desocupação desordenada. Andando pelos destroços do escritório, foi até a cozinha, se serviu do habitual forte e ruim café. Como esperado, estava incrível, perfeito! Sentou próximo à janela, com vista do 7º andar, e observou por longos minutos a civilização que ruía, e ele, por dentro e por fora, ria. Nada ainda tinha acontecido. Era só a visão do que viria, mas as pessoas já cientes do fim, criavam a destruição de seus rótulos e sentidos, implodindo a falsa ordem que edificavam. Talvez, pior do que ir ao trabalho, todos os dias, era a percepção de ter que voltar para casa ao final deles. Mas como esperado, não naquele dia. O caminho até a casa durava em torno de trinta minutos a pé, mas somente dez minutos de ônibus. Mesmo se eles ainda estivessem circulando e o trânsito estivesse normal, hoje ele desfrutaria do prazer de contemplar esta pintura urbana ao longo de sua jornada para casa. Lembrava os cenários de Bosch, conseguia imaginar uma trilha sonora tocando ao fundo. Wagner, seria Wagner, com certeza, a Cavalgada das Valquírias, igual em Apocalypse Now. Só a ideia já o fazia voar, faltava ar nos seus pulmões com a emoção. Ele era o maestro do apocalipse. Flutuava a cada passo. Chegou em casa como quem chega em um palácio, ou no céu. Atravessou o tapete vermelho que dividia a sala e sentou no seu sofá-trono. Dali visualizou o seu mórbido cenário cotidiano. Ao lado direito da parede da televisão, para além da porta que dividia os cômodos, ele via o espelho do banheiro. Espelho que cuspia no seu rosto a sua mediocridade todas as manhãs. Espelho que refletia sua repulsiva imagem. Como quem enfrenta um dragão, mas agora armado de poderes divinos, foi confrontá-lo. Mesmo vendo a miséria humana através daquele vidro refletido, se sentia a justiça que, com sua espada, condena o mundo. Não tinha espada, mas lembrou que tinha uma arma de fogo. Há um tempo havia comprado, com o propósito de estourar sua cara com um tiro. A ideia era boa, projetar seu sangue, com pedaços de ossos e cérebro, por toda aquele apartamento imundo. Mas sempre que ia executar seu plano, não achava que valeria a pena. Não por prezar sua vida, pelo contrário, por sentir que não era merecedor nem da morte. Pegou a arma como quem pega o maior de todos os tesouros. Andou para a frente do espelho e descarregou o revólver entre gritos e risos. O barulho dos tiros ecoava enquanto ele destruía aquela imagem pútrida e infantil. Seu mundo girava. Uma vertigem de gozo. Deitado no chão imundo do banheiro ele ficou, por uma eternidade. Pleno, leve, sublime, ele saiu de casa e andou. Foi andando e vendo. Foi andando e escutando a miséria dos outros. Foi andando e sentindo, com orgulho, sua própria miséria. Foi andando para o seu fim. Escrito em 05|08|2021 Imagem: recorte de Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias, 1490-1500.

 
 
 

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